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quarta-feira, 24 de junho de 2009

hail, hail - no code (pearl jam)


Ah, is there room for both of us?
Both of us apart?
Are we bound out of obligation?
Is that all we've got?
I get the words, and then i get to thinkin'
I don't wanna think, i wanna feel
And how do i feel?
And how do i...
If you're the only one, will i never be enough?
Hail, hail the lucky ones, i refer to those in love
Swore i'd love you till the day i die, and beyond..
Are we going to the same place? if so, can i come?
It's egg rolling thick and heavy
All the past you carry
Oh, i could be new... you underestimate me
If you're the only one, will i never be enough?
Hail, hail the lucky ones, i refer to those in love
I sometimes realize i could only be as good as you'll let me
Are you woman enough to be my man?
Bandaged hand in hand
I find it on the run in a race that can't be won
All hail the lucky ones, i refer to those in love
If you're my only one, so could you only one?
I want to be your one, enough...
You won, your one, your hun

terça-feira, 9 de junho de 2009

cântico negro - josé régio


"Vem por aqui" - dizem-me alguns com os olhos doces
Estendendo-me os braços, e seguros
De que seria bom que eu os ouvisse
Quando me dizem: "vem por aqui!"
Eu olho-os com olhos lassos,
(Há, nos olhos meus, ironias e cansaços)
E cruzo os braços,
E nunca vou por ali...

A minha glória é esta:
Criar desumanidade!
Não acompanhar ninguém.
- Que eu vivo com o mesmo sem-vontade
Com que rasguei o ventre à minha mãe

Não, não vou por aí! Só vou por onde
Me levam meus próprios passos...

Se ao que busco saber nenhum de vós responde
Por que me repetis: "vem por aqui!"?

Prefiro escorregar nos becos lamacentos,
Redemoinhar aos ventos,
Como farrapos, arrastar os pés sangrentos,
A ir por aí...

Se vim ao mundo, foi
Só para desflorar florestas virgens,
E desenhar meus próprios pés na areia inexplorada!
O mais que faço não vale nada.

Como, pois sereis vós
Que me dareis impulsos, ferramentas e coragem
Para eu derrubar os meus obstáculos?...
Corre, nas vossas veias, sangue velho dos avós,
E vós amais o que é fácil!
Eu amo o Longe e a Miragem,
Amo os abismos, as torrentes, os desertos...

Ide! Tendes estradas,
Tendes jardins, tendes canteiros,
Tendes pátria, tendes tectos,
E tendes regras, e tratados, e filósofos, e sábios...
Eu tenho a minha Loucura !
Levanto-a, como um facho, a arder na noite escura,
E sinto espuma, e sangue, e cânticos nos lábios...

Deus e o Diabo é que guiam, mais ninguém.
Todos tiveram pai, todos tiveram mãe;
Mas eu, que nunca principio nem acabo,
Nasci do amor que há entre Deus e o Diabo.

Ah, que ninguém me dê piedosas intenções!
Ninguém me peça definições!
Ninguém me diga: "vem por aqui"!
A minha vida é um vendaval que se soltou.
É uma onda que se alevantou.
É um átomo a mais que se animou...
Não sei por onde vou,
Não sei para onde vou
- Sei que não vou por aí!

quarta-feira, 24 de dezembro de 2008

falas - alberto caeiro > xilogravura


Falas de civilização, e de não dever ser,
Ou de não dever ser assim.
Dizes que todos sofrem, ou a maioria de todos,
Com as cousas humanas postas desta maneira.
Dizes que se fossem diferentes, sofreriam menos.
Dizes que se fossem como tu queres, seria melhor.
Escuto sem te ouvir.
Para que te quereria eu ouvir?
Ouvindo-te nada ficaria sabendo.
Se as cousas fossem diferentes, seriam diferentes: eis tudo.
Se as cousas fossem como tu queres, seriam só como tu queres.
Ai de ti e de todos que levam a vida
A querer inventar a máquina de fazer felicidade!

quarta-feira, 1 de outubro de 2008

ilha das flores - jorge furtado

(01) Estamos em Belém Novo, município de Porto Alegre, estado do Rio Grande do Sul, no extremo sul do Brasil, mais precisamente na latitude trinta graus, doze minutos e trinta segundos Sul e longitude cinquenta e um graus, onze minutos e vinte e três segundos Oeste. (02) Caminhamos neste momento numa plantação de tomates e podemos ver à frente, em pé, um ser humano, no caso, um japonês. (03) Os japoneses se distinguem dos demais seres humanos pelo formato dos olhos, por seus cabelos pretos e por seus nomes característicos. (04) O japonês em questão chama-se / Suzuki. (05) Os seres humanos são animais mamíferos, bípedes, que se distinguem dos outros mamíferos, como a baleia, ou bípedes, como a galinha, principalmente por duas características: o telencéfalo altamente desenvolvido e o polegar opositor. (06) O telencéfalo altamente desenvolvido permite aos seres humanos armazenar informações, relacioná-las, processá-las e entendê-las. (07) O polegar opositor permite aos seres humanos o movimento de pinça dos dedos o que, por sua vez, permite a manipulação de precisão. (08) O telencéfalo altamente desenvolvido, combinado com a capacidade de fazer o movimento de pinça com os dedos, deu ao ser humano a possibilidade de realizar um sem número de melhoramentos em seu planeta, entre eles, cultivar tomates. (09) O tomate, ao contrário da baleia, da galinha e dos japoneses, é um vegetal. (10) Fruto do tomateiro, o tomate passou a ser cultivado pelas suas qualidades alimentícias a partir de mil e oitocentos. (11) O planeta Terra produz cerca de sessenta e um milhões de toneladas de tomates por ano. (12) O senhor Suzuki, apesar de trabalhar cerca de doze horas por dia, é responsável por uma parte muito pequena desta produção. (13) A utilidade principal do tomate é a alimentação dos seres humanos. (14) O senhor Suzuki é um japonês e, portanto, um ser humano. No entanto, o senhor Suzuki não planta os tomates com a intenção de comê-los. Quase todos os tomates produzidos pelo senhor Suzuki são entregues a um supermercado em troca de dinheiro. (15) O dinheiro foi criado provavelmente por iniciativa de Giges, rei da Lídia, grande reino da Asia Menor, no século sete Antes de Cristo. (16) Cristo era um judeu. (17) Os judeus possuem o telencéfalo altamente desenvolvido e o polegar opositor. São, portanto, seres humanos. (18) Até a criação do dinheiro, a economia se baseava na troca direta. (19) A dificuldade de se avaliar a quantidade de tomates equivalentes a uma galinha e os problemas de uma troca direta de galinhas por baleias foram os motivadores principais da criação do dinheiro. (20) A partir do século três Antes de Cristo, qualquer ação ou objeto produzido pelos seres humanos, fruto da conjugação de esforços do telencéfalo altamente desenvolvido com o polegar opositor, assim como todas as coisas vivas ou não vivas sobre e sob a terra, tomates, galinhas e baleias, podem ser trocadas por dinheiro. (21) Para facilitar a troca de tomates por dinheiro, os seres humanos criaram os supermercados. (22) Dona Anete é um bípede, mamífero, católico, apostólico, romano. Possui o telencéfalo altamente desenvolvido e o polegar opositor. é, portanto, um ser humano. (23) Ela veio a este supermercado para, entre outras coisas, trocar seu dinheiro por tomates. (24) Dona Anete obteve seu dinheiro em troca do trabalho que realiza. (25) Ela utiliza seu telencéfalo altamente desenvolvido e seu polegar opositor para trocar perfumes por dinheiro. (26) Perfumes são líquidos normalmente extraídos das flores que dão aos seres humanos um cheiro mais agradável que o natural. (27) Dona Anete não extrai o perfume das flores. Ela troca, com uma fábrica, uma quantidade determinada de dinheiro por perfumes. (28) Feito isso, dona Anete caminha de casa em casa trocando os perfumes por uma quantidade um pouco maior de dinheiro. (29) A diferença entre estas duas quantidades chama-se lucro. (30) O lucro, que já foi proibido aos católicos, hoje é LIVRE / para todos os seres humanos. (31) O lucro de Dona Anete é pequeno se comparado ao lucro da fábrica, mas é o suficiente para ser trocado por um quilo de tomate e dois quilos de carne, no caso, de porco. (32) O porco é um mamífero, como os seres humanos e as baleias, porém quadrúpede. (33) Serve de alimento aos japoneses, aos católicos e aos demais seres humanos, com exceção dos judeus. (34) Os alimentos que Dona Anete trocou pelo dinheiro que trocou por perfumes extraídos das flores serão totalmente consumidos por sua família num período de um dia. (35) Um dia é o intervalo de tempo que o planeta terra leva para girar completamente sobre o seu próprio eixo. (36) Meio dia / é a hora do almoço. (37) A família é a comunidade formada por um homem e uma mulher, unidos por laço matrimonial, e pelos filhos nascidos deste casamento. (38) Alguns tomates que o senhor Suzuki trocou por dinheiro com o supermercado e que foram novamente trocados pelo dinheiro que dona Anete obteve como lucro na troca dos perfumes extraídos das flores foram transformados em molho para a carne de porco. (39) Um destes tomates, que segundo o julgamento de dona Anete, não tinha condições de virar molho, foi colocado no lixo. (40) Lixo é tudo aquilo que é produzido pelos seres humanos, numa conjugação de esforços do telencéfalo altamente desenvolvido com o polegar opositor, e que, segundo o julgamento de um determinado ser humano, não tem condições de virar molho. (41) Uma cidade como Porto Alegre, habitada por mais de um milhão de seres humanos, produz cerca de quinhentas toneladas de lixo por dia. (42) O lixo atrai todos os tipos de germes e bactérias que, por sua vez, causam doenças. As doenças prejudicam seriamente o bom funcionamento dos seres humanos. (43) Mesmo quando não provoca doenças, o aspecto e o aroma do lixo são extremamente desagradáveis. (44) Por isso, o lixo é levado para determinados lugares, bem longe, onde possa, livremente, sujar, cheirar mal e atrair doenças. (45) Em Porto Alegre, um dos lugares escolhidos para que o lixo cheire mal e atraia doenças chama-se Ilha das Flores. (46) Ilha é uma porção de terra cercada de água por todos os lados. A água é uma substância inodora, insípida e incolor formada por dois átomos de hidrogênio e um átomo de oxigênio. (47) Flores são os órgãos de reprodução das plantas, geralmente odoríferas e de cores vivas. (48) De flores odoríferas são extraídos perfumes, como os que do Anete trocou pelo dinheiro que trocou por tomates. (49) Há poucas flores na Ilha das Flores. Há, no entanto, muito lixo e, no meio dele, o tomate que dona Anete julgou inadequado para o molho da carne de porco. (50) Há também muitos porcos na ilha. (51) O tomate que dona Anete julgou inadequado para o porco que iria servir de alimento para sua família pode vir a ser um excelente alimento para o porco e sua família, no julgamento do porco. (52) Cabe lembrar que dona Anete tem o telencéfalo altamente desenvolvido enquanto o porco não tem nem mesmo um polegar, que dirá opositor. (53) O porco tem, no entanto, um dono. O dono do porco é um ser humano, com telencéfalo altamente desenvolvido, polegar opositor e dinheiro. (54) O dono do porco trocou uma pequena parte do seu dinheiro por um terreno na Ilha das Flores, tornando-se assim, dono do terreno. (55) Terreno é uma porção de terra que tem um dono e uma cerca. (56) Este terreno, onde o lixo é depositado, foi cercado para que os porcos não pudessem sair e para que outros seres humanos não pudessem entrar. (57) Os empregados do dono do porco separam no lixo os materiais de origem orgânica que julgam adequados para a alimentação do porco. (58) De origem orgânica é tudo aquilo que um dia esteve vivo, na forma animal ou vegetal. Tomates, galinhas, porcos, flores e papel são de origem orgânica. (59) Este papel, por exemplo, foi utilizado para elaboração de uma prova de História da Escola de Segundo Grau Nossa Senhora das Dores e aplicado à aluna Ana Luiza Nunes, um ser humano. (60) Uma prova de História é um teste da capacidade do telencéfalo de um ser humano de recordar dados referentes ao estudo da História, por exemplo: quem foi Mem de Sá? Quais eram as capitanias hereditárias? (61) Recordar é viver. (62) Alguns materiais de origem orgânica, como tomates e provas de história, são dados aos porcos como alimento. (63) Aquilo que foi considerado impróprio para a alimentação dos porcos será utilizado na alimentação de mulheres e crianças. (64) Mulheres e crianças são seres humanos, com telencéfalo altamente desenvolvido, polegar opositor e nenhum dinheiro. (65) Elas não têm dono e, o que é pior, são muitas. (66) Por serem muitas, elas são organizadas pelos empregados do dono do porco em grupos de dez e têm a permissão de passar para o lado de dentro da cerca. (67) Do lado de dentro da cerca elas podem pegar para si todos os alimentos que os empregados do dono do porco julgaram inadequados para o porco. (68) Os empregados do dono do porco estipularam que cada grupo de dez seres humanos tem cinco minutos para permanecer do lado de dentro da cerca recolhendo materiais de origem orgânica, como tomates e provas de história. (69) Cinco minutos são trezentos segundos. (70) Desde mil novecentos e cinquenta e oito, o segundo foi definido como sendo o equivalente a nove bilhões, cento e noventa e dois milhões, seiscentos e trinta e um mil, setecentos e setenta ciclos de radiação de um átomo de césio. (71) O césio é um material não orgânico encontrado no lixo em Goiânia. (72) O tomate / plantado pelo senhor Suzuki, / trocado por dinheiro com o supermercado, / trocado pelo dinheiro que dona Anete trocou por perfumes extraídos das flores, / recusado para o molho do porco, / jogado no lixo / e recusado pelos porcos como alimento / está agora disponível para os seres humanos da Ilha das Flores. (73) O que coloca os seres humanos da Ilha das Flores depois dos porcos na prioridade de escolha de alimentos é o fato de não terem dinheiro nem dono. (74) O ser humano se diferencia dos outros animais pelo telencéfalo altamente desenvolvido, pelo polegar opositor e por ser livre. (75) Livre é o estado daquele que tem liberdade. (76) Liberdade é uma palavra que o sonho humano alimenta, que não há ninguém que explique e ninguém que não entenda.

terça-feira, 30 de setembro de 2008

o vazio - rubem alves


" Minhas netas: Hoje quero que vocês me respondam uma pergunta: o que é que vale mais, o cheio ou o vazio? Ah! Pergunta boba! Todo mundo sabe que o que o cheio vale mais que o vazio. Quem gostaria de receber uma caixa vazia como presente de aniversário? O que a gente quer é uma caixa cheia. É o cheio que vale. Tanto assim que o cheio custa dinheiro. Mas o vazio não custa nada. Ninguém compra o vazio.

Parece óbvio que o cheio vale mais que o vazio... Mas será mesmo? É gostoso comprar uma sandália nova. Mas uma sandália é para a gente pôr os pés dentro dela. Mas para se pôr os pés dentro dela é preciso que o “dentro dela” esteja vazio. Se o “dentro dela“ estiver cheio o pé não entra. É o vazio da sandália que a torna útil. Vocês gostam de refrigerante. Querem pôr o refrigerante no copo. Mas para se pôr o refrigerante no copo é preciso que o copo esteja vazio. Um copo é um vazio cercado de vidro por todos os lados, menos o de cima. Aí você dá uma risadinha e diz: “Eu não preciso de copo. Uso um canudinho de plástico...“ Mas o canudinho só funciona se estiver vazio. É preciso que ele esteja vazio para que o refrigerante passe por dentro dele quando você chupa. Na escola o professor já lhes explicou como são os pulmões? Eles se parecem com um esponja: são cheios de buraquinhos vazios. Os buraquinhos têm de estar vazios para que o ar entre neles. Coisa ruim é quando, resfriados, os pulmões ficam “cheios“. Pulmão cheio não deixa respirar. Coisa gostosa é andar de bicicleta. Você pedala, as rodas rodam, e lá vai você sentindo o ventinho gostoso no rosto. Mas as rodas, para girarem, precisam ter um buraco no meio. É nesse buraco que entra o eixo. É o vazio no centro da roda que a torna útil. Vocês gostam de bolo. Eu também. Para se fazer um bolo a gente procura a receita num livro de receitas. A primeira coisa que aparece numa receita são os “ingredientes“: farinha, ovos, açúcar, manteiga, leite e outras coisas. Mas eu nunca vi, em livro de receitas, explicado que se não se misturar uma pitada de vazio com os ingredientes, o bolo não fica bom. Fica “embatumado“, pesado, ruim. É o vazio que faz o bolo ficar fofinho e leve. Aí você me pergunta: “Mas como se faz para misturar o vazio na massa do bolo?“ É simples. É para isso que se batem as claras dos ovos. As claras, sem bater, são só o “cheio“. Mas, depois de batidas, estão cheias de vazio. Vocês sabem bater claras? É divertido. A gente pega um garfo e vai enrolando a clara com movimentos circulares rápidos. Para quê? Para pescar vazio. Depois de batidas as claras, olhem bem: elas se transformaram numa espuma, milhares de bolhas minúsculas. Dentro de cada bolha está um pouquinho de ar. O fermento faz o mesmo efeito. Misturado com a massa o fermento começa a produzir bolhas bem pequenas de um gás, semelhantes àquelas que existem dentro das garrafas de refrigerantes. A casa também é um vazio cercado de paredes. Para isso servem as paredes: para pegar o vazio e permitir que ele seja usado. Os arquitetos e arquitetas são os artistas que sabem a arte de pegar vazios por meio de paredes. E as janelas? Também são vazios. Buracos. Já imaginaram uma casa sem janelas? Seria horrível viver numa casa sem janelas. Só conheço uma casa sem janelas: os prédios do Congresso Nacional, em Brasília. Parece que a ausência de janelas não faz bem nem para os sentimentos e nem para os pensamentos... É o vazio entre os meus olhos e o jardim que me permite ver o jardim. É o vazio chamado “silêncio“ que me permite ouvir a música. E o espelho? Para ser bom, para refletir o seu rosto, é preciso que seja vazio.

Agora uma de vocês me diz: “Mas vô: faz tempo que você está contando como era a sua vida de menino, na roça! E agora você começa a falar sobre o vazio...“ Aí eu explico: “É que a roça é o lugar onde o vazio é grande. A cidade é o lugar onde o vazio é pequeno.“ Na cidade a gente olha para fora e os olhos logo batem num edifício, num muro, nos automóveis. Na cidade a gente vê curto. Na roça, porque o vazio é grande, os olhos vêem longe, muito longe: os campos, as matas, as montanhas no horizonte, o sol que morre, a lua que nasce, as estrelas... Que coisa bonita é ver a cortina branca da chuva que vai chegando... Quando o vazio é grande o mundo cresce. Coisa que eu gostava de fazer quando menino: deitar no capim e ficar vendo as nuvens. Pareciam navios navegando no mar do céu, mudando de forma, sem parar: o pato virava regador, o regador virava elefante... Eu não entendia uma coisa: como é que as nuvens não caíam! De vez em quando elas caíam como chuva de água ou chuva de pedra de gelo. Disso eu concluía que nuvem era água e gelo. Aí eu me perguntava: como é que água e gelo ficam lá em cima, flutuando como se fossem flocos de algodão? E os urubus? Todo mundo acha que urubu é ave feia. Discordo. Vocês já pararam para ficar olhando o vôo dos urubus? Pensando no vôo dos urubus eu me lembrei de uns versos da Cecília Meireles: “Os dias felizes estão entre as árvores, como pássaros: viajam nas nuvens, correm nas águas, desmancham-se na areia. Todas as palavras são inúteis, desde que se olha para o céu. A doçura maior na vida flui na luz do sol, quando se está em silêncio. Até os urubus são belos, no largo círculos dos dias sossegados...“ Os urubus voam muito alto – parecem uns pontinhos negros no azul vazio do céu. Para voar eles nem batem asas. Eles flutuam nas correntes de ar quente que sobem. Foram os urubus que ensinaram os homens a voar com as asas delta. Se não fosse o vazio do céu não haveria nem o vôo dos pássaros e nem o vôo dos homens.

Na roça, porque o vazio era grande, a liberdade era grande também. O vazio é um lugar bom para brincar. Se não fosse o vazio do céu, como é que eu poderia empinar uma pipa? Se não fosse o vazio debaixo da árvore, como é que eu ia balançar, até bater com a ponta do pé na folha do galho alto? Os campos eram imensos vazios, sem cercas. De manhã, depois do café com leite, pão e manteiga, eu saía para fora. Não era preciso prestar atenção no tráfego para não ser atropelado. Não havia automóveis correndo e buzinando. No vazio eu era um menino livre, brincalhão... Meus pensamentos voavam com as nuvens e os urubus...

E havia também um vazio chamado silêncio. Silêncio é quando não há ruídos e barulhos. Na cidade não há o vazio do silêncio: nossas casas são invadidas pelo ronco das motocicletas, das buzinas, do som a todo volume. Quando o espaço está vazio de barulhos a gente pode escutar as músicas da natureza. Há 150 anos um chefe índio dos Estados Unidos escreveu uma carta ao presidente daquele país falando sobre as cidades dos ditos civilizados. Disse ele: “Não há lugar calmo nas cidades do homem branco. Nenhum lugar para escutar o desabrochar das folhas na primavera ou o bater das asas de um inseto. A barulheira ofende os ouvidos. E o que resta da vida se um homem não pode escutar o choro solitário de um pássaro ou o coaxar dos sapos à volta de uma lagoa, à noite...“ Vocês já ouviram a música das folhas das árvores sacudidas pelo vento? Já ouviram o canto de um sabiá no meio da mata, ao entardecer? O zumbido das abelhas em busca de flores?

A vida precisa do vazio: a lagarta dorme num vazio chamado casulo até se transformar em borboleta. A música precisa de um vazio chamado silêncio para ser ouvida. Um poema precisa do vazio da folha de papel em branco para ser escrito. E as pessoas, para serem belas e amadas, precisam ter um vazio dentro delas. A maioria acha o contrário; pensa que o bom é ser cheio. Essas são as pessoas que se acham cheias de verdades e sabedoria e falam sem parar. São umas chatas quando não são autoritárias. Bonitas são as pessoas que falam pouco e sabem escutar. A essas pessoas é fácil amar. Elas estão cheias de vazio. E é no vazio da distância que vive a saudade...

A roça é o lugar onde o vazio é grande. O vazio grande da roça, com seus espaços e silêncios, é o colo da natureza, nossa mãe de onde saímos e para onde haveremos de voltar... Assentados no colo da mãe o medo se vai e tudo fica bom. A cidade é o cheio. A roça é o vazio. Tenho saudade do vazio da roça..."

(Correio Popular, Caderno C, 24/02/2002)